Cenário pós eleitoral: A continuidade do discurso do ódio

     O resultado das eleições não trouxe, ao contrário do que asseguram alguns, um discurso de ódio generalizado à tona: ele já existe desde muito tempo atrás, e apenas ganhou tanto espaço e repercutiu a partir das mais variadas vozes - e aqui não houve diferenças de condição financeira ou orientação política - porque muitas outras foram omissas e, mesmo em silêncio, concordaram com partes substanciais da nova percepção difundida.
  Tenho uma mensagem direta, porém de nenhuma forma ofensiva, aos que têm propagado o discurso pronto do "bolsa-esmola", e só o farei, porque considero esse um dos principais argumentos rasos que desencadeiam outros da mesma estirpe, e também pelo fato de que todos eles juntos têm se tornado o alicerce a partir do qual o ódio toma forma e se estrutura. Em primeiro lugar, acho necessário definir no que consistiria uma esmola, e tenho certeza de que a maioria concorda que as esmolas não costumam representar uma quantia vultosa. Uma esmola poderia corresponder ao preço, por exemplo, de uma revista importada de moda e decoração que vendi, durante alguns meses, em uma livraria do Bourbon; poderia ser o valor de, talvez, um terço do carrinho de compras que esses mesmos clientes carregavam para lá e para cá no supermercado ao lado dessa livraria; poderia ser também os valores somados do vale-alimentação e vale-transporte dos funcionários que atendiam esses clientes; Seja como for, poderíamos recortar essa quantidade de dinheiro a nosso bel-prazer e considerar que, seja qual for o caso, essas pessoas conquistaram o dinheiro com trabalho. Do alto da pirâmide social até a sua base, honrosos trabalhadores sacrificaram esforço e empenho para adquirir aquelas cédulas verdes, e é absolutamente injusto que outros as recebam sem fazer por merecer.
    Mérito, aliás, é uma palavra que tem sido usada e estendida em sua generalidade para todas as situações da vida sem qualquer objeção. Trabalhar, certamente, confere mérito ao obreiro; Refletir em formas como esse trabalho pode sair do plano individual, e atingir o coletivo, também. Essa é uma parte um pouco mais sutil e complicada do raciocínio que é, sabiamente, ignorada por aqueles que querem provar seu argumento a qualquer custo: quando todos trabalham apenas para si e enxergam seu entorno somente a partir da própria perspectiva, o mérito pode ter uma representatividade igualmente limitada a cada umbigo. Não entrarei aqui no assunto espinhoso das heranças e do patrimônio acumulado das famílias, e nem mesmo da abissal divisão entre o ensino público e particular, porque acredito que a controvérsia a respeito do mérito não é uma corrida sem regras onde, além de querer chegar primeiro, as pessoas façam questão de exibir os meios dificultosos a que foram obrigadas a recorrer para tal; Pelo contrário, considero que não é disso que o discurso do mérito carece, e sim de humanidade, abstração e perspectiva do todo. Um grande empresário gerando emprego, renda, e condições de ascensão e crescimento para os seus funcionários não tem menos mérito do que qualquer indivíduo que recebe auxílio-assistencial e consegue dividir o dinheiro entre a educação dos filhos, a própria formação profissional, e se tornar exemplo a ser seguido entre os demais membros da sua comunidade. Ambos são locomotoras de avanço e progresso no microcosmo em que estão inseridos, cada qual à sua maneira e de acordo com as suas possibilidades.
   O discurso de ódio ramifica e segrega, mas, antes disso, nos animaliza. Apenas o ser humano é capaz de sentir plena e profunda empatia pelo seu próximo, e desejar a ele o mesmo que desejaria a si próprio, e isso independe de qualquer partido, etnia, gênero, religião ou nacionalidade. A meritocracia, e alguns dos seus defensores que recorrem ao ódio para legitimá-la, não estão errados em desejar que o mérito seja reconhecido e ocupe espaço. Estão enganados - e quase animalizados - ao tratar todo um país, com sua rica pluralidade de formação, estrutura e recursos como a extensão do quintal da sua casa e dos cabos dos seus computadores. E é justamente esse o motivo que torna o discurso de ódio irracional e tão facilmente detectável: não há nada que o sustente que não o desejo egoísta de se tornar o centro de um universo social, que abrange desde aqueles que conseguem sustentar uma família inteira com o modesto valor de uma "esmola", até os que preferem, com a mesma quantia, redecorar toda a casa e seu tão limitado jardim.

Texto por Liziane Edler, do blog Licença para o imperfeito
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