A história da ex-modelo viciada em crack: precisamos falar sobre seletividade social.

     As palavras "modelo" e "Cracolândia" parecem desajustadas e incompatíveis se colocadas, de alguma forma, em um mesmo contexto. Possivelmente, foi por causa desse sentimento de estranheza e perplexidade que os jornalistas da "Veja São Paulo" decidiram entrevistar e contar a história de Loemy Marques. Essa moça, a exemplo de tantas outras, veio de longe para tentar construir uma vida digna, mas, por algum motivo, acabou se tornando dependente de um vício conhecido por diminuir as chances de sobrevivência e trazer sequelas difíceis de superar. Convivendo com outros usuários na famigerada "Cracolândia", Loemy atraiu atenção e olhares preocupados... No entanto, parece imperar como nossa obrigação, enquanto cidadãos, que façamos um questionamento invertido: e os outros "viciados", que carregam essa marca tão pejorativa todos os dias, e permanecem abandonados em uma invisibilidade cruel? Por que a mesma comoção direcionada à ex-modelo não se estende a eles?


     Preconceito enraizado é um assunto espinhoso, do qual tentamos fugir a qualquer custo: ora dizemos que estamos isentos de responsabilidade em relação aos que vivem à margem da sociedade, ora cobramos medidas mais rigorosas do governo, embora ninguém costume apoiar projetos que valorizem uma distribuição de renda mais igualitária. Em uma ânsia desesperada de justificação, alguns dirão que a mídia dita as regras e, se apenas a modelo chama atenção, é porque os grandes empresários que controlam as emissoras assim o querem. Faz-se necessário, mesmo assim, contornar o discurso pronto e enfrentar a realidade aterrorizante de que todos os cidadãos se identificam mais com a moça alta, de pele branca e olhos claros do que com o menino negro que pede dinheiro na esquina e pode ser um assaltante. É preciso engolir em seco, por mais que doa, o fato de que tanto os jornalistas da Veja quanto os leitores e espectadores viram em Loemy uma semelhante, alguém que poderia ser sua vizinha ou prima, mas que, por azar ou circunstâncias do destino, perdeu-se em meio a uma "marginalidade" que tem cor e cara. O interesse em reabilitar a ex-modelo, em verdade, traduz-se como uma restituição à ordem natural estabelecida socialmente: as pessoas que poderiam estampar a capa de uma revista, ou serem mocinhas de Malhação, merecem oportunidades ainda que tenham percorrido um caminho ao encontro das drogas tais quais aquelas que já nasceram em um substrato de pobreza e carência de recursos quase impossível de perpassar.


     Loemy e o "mendigo gato de Curitiba", o qual também foi reintegrado à sociedade depois que uma foto sua foi veiculada nas redes sociais, tiveram trajetórias individuais que merecem respeito e consideração, mas tenho certeza de que outras pessoas, com necessidades equivalentes ou até maiores, sentem que não podem ser abraçadas por essa ajuda seletiva apenas por não se enquadrarem em um padrão estético, o qual, aliado ao preconceito racial, permite que a sua vivência nas ruas, em meio às drogas e à violência permaneça naturalizada, e até bem aceita, visto que o povo atirado à sarjeta é inserido no paisagismo urbano, e suas histórias não costumam ser ouvidas. 


     Espero que possamos refletir alguns instantes sobre isso para não fazermos parte da massa silenciosa que, com sua anuência e audiência, reforçam essa ideia de que alguns nascem merecedores de assistência e empatia, e outros, não. 

     Texto por Liziane Edler, do blog Licença para o imperfeito
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4 comentários

  1. Vi a ex modelo viciada hoje no programa do Rodrigo Faro. Concordo com muito do que disse, realmente temos uma mídia 'marrom' e que decide quem merece e não merece baseando-se apenas num padrão estético imposto pela própria mídia.
    Xerim :)
    Visite o TL: http://www.trilouca.com/

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    1. Também concordo com o que você escreveu, Demara!

      Obrigada pelo comentário!

      beijos!!

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  2. eu não poderia dizer melhor. seu texto ta ótimo e traduz muito do que eu penso sobre isso,
    é difícil da gente se livrar de certo preconceitos, é uma luta diaria de não e deixar levar senso comum, por
    aquilo que está na mente da sociedade há tanto tempo. navegar pela internet e achar um texto como o seu é maravilhoso.

    bjs
    http://gipsyyy.blogspot.com.br/

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    1. Muito obrigada pelo elogio, Karoline! Comentários como o seu são minha maior motivação!

      beijos!!

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