Suba o elevador e, três andares acima, vire à direita: seus gestos são tão precisos que, provavelmente, as expressões das pessoas no caminho não vão lhe atrair a atenção. Toda a ação que demanda energia deve ter um fim, e olhar assim, para o nada, o desconhecido, o desinteressante, não há de lhe render mais que um vago pensamento. A trajetória deve continuar até chegar às pilhas, aos cheques, às prateleiras, ao papel-de-presente-muito-bem-dobrado, ao envelope do correio e ao café quente para suportar o sono antes do meio-dia. Isso para que até o fim da tarde o dinheiro tenha mudado de bolso, as pilhas girado em outras mesas, e as manchas de café borrado as mangas da roupa branca, denunciando a exaustão.
Na infância, desenhávamos um auto-retrato e, diante da disformidade que a ineficiência motora provocava, sorríamos. Ali havia uma rara felicidade de existir até o ponto que nossa imaginação alcançava: de nariz torto para o lado, fios verdes e olhos esbulhados éramos, de alguma forma, um esboço personalíssimo e insubstituível. Este mesmo que, tão cedo, nos abandona por uma foto 3x4, um registro, uma ficha arquivada, um "entraremos em contato" perdido entre tantas outras frases sem sentido. Foucault, em seu brilhantismo, denunciou nossa tecnicidade tão diretamente que nos reservamos o direito de olhar para tudo com inabalável distanciamento: "veja só como as coisas são" enquanto arremessamos o currículo de alguém dentro de uma caixa de papel para rascunho. Aquele teria sido o vigésimo candidato, mas com que cor ele pintava seus próprios cabelos aos cinco anos?
Antes de aprender a ler sentenças longas, geralmente, decoramos as regras simplórias da quantificação para não receber o troco errado: vinte vale mais do que dez, porém, bem menos do que cem, então, me diga cá o que tem a oferecer para eu avaliar se a proposta é desejável. Nesse mundo estranho onde tudo pode ser organizado em pilhas de prioridades e ofertas, o câmbio é livre: troque tempo por moedas, moedas por lazer, e lazer por horas de sono, que tudo se acertará em tempo breve. Ensinamos as crianças a contar e empilhar, e logo elas nos surpreendem com o acerto de contas: quero aquele raro objeto, porque é melhor, caro e veloz. Assim, economizarei o tempo de que não mais disponho para sonhar e pensar.
Ser homem-máquina tem suas vantagens, não há que se negar: livrar-se de grandes problemas morais com um "sinto muito", e trocar "dispensar" por "tornar a logística mais eficiente" são inovações que só um homem de ferro pode suportar. Ele é tão adaptável que quase imita comportamentos que conhecemos como essencialmente humanos: não forma amizades, mas associa-se; não expressa emoções, mas cumprimenta; não cria intrigas, mas sabe se ajustar ao círculo social que mais lhe favoreça; O homem-máquina se tornou tão funcional, tão diligente, tão solúvel, tão aceitável aos nossos olhos que já não o reconhecemos, e podemos até jurar que se perdeu em meio a esses livros de filosofia de autores, certamente, ultrapassados.
Por onde anda, afinal, o homem-máquina? Diante desse espantoso sumiço, melhor tomar algum cuidado antes de se mirar no espelho...
Texto por Liziane Edler, do blog Licença para o imperfeito