Há
pouco tempo, a campanha “Chega de Fiu Fiu” ganhou destaque nas redes sociais
por compartilhar informações sobre assédio, depoimentos, e até mesmo um mapa que
registra os locais mais perigosos do país em relação à violência contra a
mulher. Tentei conversar bastante com conhecidos e amigos a respeito da
iniciativa do projeto, porque, infelizmente, ainda existe uma crença
disseminada de que as grosserias que ouvimos, freqüentemente, nas ruas são
apenas “cantadas”, e que as reclamações sobre isso não passam de “exageros das
feministas”.
Quem é mulher sabe o quanto caminhar
pelas ruas, ainda que durante o dia e em horários de grande movimento, pode ser
assustador. Essa é uma sensação difícil de explicar para quem não a sente na pele:
quando um homem a aborda e lhe direciona qualquer grosseria que queira, comentando
a respeito do seu corpo, é impossível não pensar que, daqui a uns instantes, a
agressão verbal pode se tornar física. É o momento em que apertamos o passo,
olhamos para o lado oposto, abaixamos a cabeça, e engolimos em seco a dor
constante de ter o próprio corpo confundido com o espaço público da rua. Isso é
ensinado aos homens desde muito cedo: abordar mulheres com grosserias é sinal e
afirmação de masculinidade, e tocar no seu corpo é um direito legitimado por
cada propaganda, reportagem ou discurso que reduz a mulher a um mero objeto de
apreciação e deleite masculino. Somos vendidas junto com cerveja (felizmente,
já existem limitações recentes para essas propagandas), aparecemos de calcinha
e sutiã para “pedirmos com jeitinho” algo que queremos ao parceiro (afinal,
conversa e argumentos são destinados apenas aos “homens racionais”), apanhamos
nas novelas e lá também agüentamos, em silêncio, traições. Essa propagação de
abusos institucionalizada, por fim, atinge o pensamento dominante: “cantada é
coisa de homem, e a mulher tem de aceitá-la”.
Existem opiniões contrárias ao
argumento de que as grosserias na rua representam uma violação do nosso espaço
privado. Alguns homens alegam que abordam as mulheres para elogiar, e que isso é
uma forma de aproximação. Não sei se todos concordam, mas iniciar uma paquera
com um estranho no meio da rua por que ele elogiou os seus olhos não me parece
nem comum, menos ainda seguro. Além disso, percebo que as partes do corpo das
mulheres elogiadas costumam remeter ao risco constante e iminente do abuso
sexual. Uma situação que exemplifica bastante isso acontece quando a mulher,
vencendo seu medo, toma coragem e responde ao homem que a assediou mostrando
seu desconforto e desagrado. Já li diversos relatos sobre essa experiência, e há
quase unanimidade no que acontece a seguir: os homens se tornam ainda mais
grosseiros e xingam a mulher de estúpida, feia, mal amada até os adjetivos mais
degradantes. Nesse ponto, o fundamento da abordagem se torna evidente: através
dele, o homem reafirma seu poder de dominação no espaço público. As mulheres
que passam pela rua são submetidas à avaliação como se estivessem disponíveis,
transformando-se, a todo o momento, em vítimas de abusos em potencial.
A partir de uma rápida pesquisa, você
pode encontrar diversos fóruns em que homens reivindicam para si o direito de comentar
a respeito dos nossos corpos como bem entenderem, e legitimam esse comportamento
nas mais diversas teses desde evolução natural até componentes biológicos e falácias
a respeito de “papel de macho e de fêmea”. É lamentável o nível de retrocesso
que os discursos atingem quando se trata de questionar a naturalização da violência
em que vivemos quando muitos preferem acreditar que, de alguma forma, ainda estamos no tempo das cavernas.
Se você concorda que não há mais
espaço para abusos como esses, busque informações, questione, converse e, se
for necessário, denuncie. A busca pelo emponderamento deve ser constante até
que nossos caminhos pelas ruas, ou por onde quer que seja, sejam, de fato,
livres de todas as formas de violência e coação.
Texto por Liziane Edler, do blog Licença para o imperfeito
Texto por Liziane Edler, do blog Licença para o imperfeito